sexta-feira, 15 de maio de 2020

O SERVIDOR PÚBLICO DOADOR DE SANGUE: O limite entre o elogio e a reprimenda disciplinar



Desde a Lei nº 1.075, de 27/03/1950 é garantido ao servidor público civil, militar ou autárquico, voluntariamente apresentar-se como doador sangue aos estabelecimentos públicos que mantém Banco de Sangue, o que, ex vi lege, também lhe é assegurado o direito ao registro de elogio em seus assentamentos funcionais, bem como a respectiva dispensa do ponto no dia em que ocorrer a doação.
A importância do instituto merece destaque, sobre o qual não se deve olvidar o merecido respeito, fato considerado relevante quando se busca na história as suas razões propedêuticas.

A referida norma, já septuagenária, originou-se com a apresentação do Projeto de Lei nº 216/19491, de autoria do Deputado Federal Lima Cavalcanti, UDN/PE, cuja ementa já assinalava a justificativa das “providências de estímulo aos bancos de sangue”. Tal iniciativa parlamentar refletia a demanda latente que havia na década de 40, quando a hemoterapia começava a ser vista como especialidade médica e que exigia, no Brasil, a instituição de Bancos de Sangue2.

As doações de sangue, à época, decorriam do apelo aos parentes dos doentes, ou através de contrapartida remuneratória, o que, ainda assim, não supria as necessidades médicas e demonstrava a urgente necessidade do incentivo à doação voluntária, para a construção de um patrimônio comum a toda a coletividade, dada a “singularidade do sangue como recurso terapêutico”.

A Lei nº 10.205/2001, que regulamenta dispositivo constitucional (§ 4º, art. 199/CF) estabelece, em seu artigo 14, os princípios norteadores relativos à doação de sangue, dentre os quais se destacam:
  • A voluntariedade;
  • A gratuidade;
  • A solidariedade humana e compromisso social; e
  • A proibição da comercialização do sangue.
Segundo informações da Agência Brasil3, “A cada bolsa de sangue doada, até quatro vidas podem ser salvas no país, segundo estatísticas do Ministério da Saúde”. Isso não é pouca coisa, considerando o fato de que, no Brasil, de acordo com o Conselho Federal de Medicina - CFM4, “a cada 60 minutos, em média, pelo menos cinco pessoas morrem vítimas de acidente de trânsito”.

Mais adiante, o CFM também informa que “ (…) os acidentes de trânsito (…) deixaram mais de 1,6 milhão de feridos nos últimos dez anos, constituem um grave problema de saúde pública e que provoca sobrecarga nos serviços de assistência, em especial nos prontos-socorros e nas alas de internação dos hospitais. (…) Segundo a análise do CFM, a cada hora, em média, cerca de 20 pessoas dão entrada em um hospital da rede pública de saúde com ferimento grave decorrente de transporte terrestre”.

A tais acidentes de trânsito que vitimizam muitos brasileiros, somam-se tantos outros gravames e doenças que recorrem aos hospitais, que emergencialmente necessitam de sangue para sua recuperação, como Câncer, que de acordo com o Instituto Nacional do Câncer – INCA, citado pelo Instituto Oncologia5 o país “deverá registrar 625 mil novos casos de câncer para cada ano no triênio 2020/2022”.

Segundo recente reportagem veiculada pela Folha de São Paulo6, em meio à pandemia do coronavírus, os bancos de sangue do país estão quase zerados o que, prima facie, demonstra e justifica a importância e o cuidado que se deve ter no trato com a matéria em comento.

Por óbvio e indiscutível é direito do servidor público ser doador de sangue, como também, por corolário, também o é ao elogio que, na qualidade de doador voluntário, traz para si a benemerência tão cara nos dias de hoje, onde a solidariedade, conturbada pela ganância desenfreada e pelo nefasto egoísmo desagregador e solipsista, definha-se a segundo plano ou simplesmente é delegada para a responsabilidade do Estado paternalista.

Ocorre que o Estado é pessoa jurídica e como tal não doa sangue, coisa que somente é possível às pessoas fazê-lo. Não obstante, o Estado, para fazer valer a política pública do incentivo à doação, deve começar fazendo o dever de casa, ou seja, estimulando os próprios servidores para que voluntariamente doem sangue, utilizando-se do instituto do elogio nos assentamentos funcionais do servidor e do abono da falta no dia da doação.

A administração pública, notadamente os setores correcionais, diante do impasse causado pelo direito do servidor público tornar-se doador de sangue e, com isso, ter que se ausentar do serviço comprometendo a regular prestação do serviço público, tem-se esforçado ante o desafio de identificar a situação-limite entre a conduta digna de elogio e a conduta passível de reprimenda disciplinar.
Verifica-se, de fato, em observação empírica, que alguns servidores realmente utilizam dos direitos decorrentes à doação de sangue para não ter que comparecer ao local de trabalho no dia da doação. Isso tem gerado certo constrangimento nos gestores públicos, que não sabe como lidar com o assunto, e muitas vezes encaminham para a área correcional a apuração de possível desvio de finalidade, em face das ocorrências em que servidores, de forma reiterada, se afastam do trabalho para doar sangue.
O tema é melindroso complexo e de difícil solução, pois exige da banca correcional expertise e instrumentos de aferição nem sempre disponíveis.

A Portaria Nº 1587, de 04/02/2016, art. 37, do Ministério da Saúde estabelece que:
A frequência máxima admitida é de 4 (quatro) doações anuais para o homem e de 3 (três) doações anuais para a mulher, exceto em circunstâncias especiais, que devem ser avaliadas e aprovadas pelo responsável técnico do serviço de hemoterapia.
§ 1º O intervalo mínimo entre doações deve ser de 2 (dois) meses para os homens e de 3 (três) meses para as mulheres”.
A objetividade temporal definida para a doação de sangue (4 doações anuais para homens e 3 para mulheres) sinaliza para um parâmetro e facilita a vida do gestor público que, respaldado nesse quantum, poderá, em tese, dadas as circunstâncias concretas, negar os benefícios.

Casos particulares como dos servidores que desempenham suas tarefas em regime de plantão e escala de revezamento, considerando ainda os fatores como o número escasso de servidores na unidade, podem tornar mais grave a situação da ausência do servidor, ainda que ele tenha se ausentado por um motivo justo e louvável.

É o caso, por exemplo, dos servidores que atuam em postos de vigilância (área da segurança pública) ou postos de cuidado (área de emergência e saúde), onde muitas vezes o serviço é prestado por poucos servidores, ou apenas um servidor, e a falta de um poderá comprometer indelevelmente o interesse público e causar graves prejuízos e transtornos à sociedade, talvez ainda maior do que a falta de sangue. Nesses casos, a ausência de um servidor em seu posto de serviço poderá causar graves danos coletivos, em favor do atendimento ao interesse de menor monta.

Evidentemente que “casos concretos” devem ser analisados como “casos concretos’, com suas sutilezas e especificidades. Por isso, deve-se exigir dos gestores públicos a justa medida na análise de todas as variantes do problema e aplicar a solução mais adequada, mister quando se trata de casos em que se requer a reprimenda disciplinar.

Verifica-se que alguns órgãos exigem de seus servidores o prévio aviso quando forem doar sangue, fato que, corriqueiramente, ocorre no início do dia. Acontece que esse prévio aviso nem sempre é possível que ocorra, como nos acasos de emergência ou de um parente que se encontra hospitalizado e requer uma doação urgente e imediata, não sendo possível a comunicação prévia.
Nesses casos, não é razoável tal exigência quando nem mesmo o doador sabe se tal doação irá se efetivar, em decorrência de múltiplos fatores que não dependem de sua vontade, como, por exemplo, o não funcionamento dos equipamentos dos hemocentros ou a falta dos requisitos pessoais e clínicos para a doação de sangue, etc.

Nesses casos fortuitos, inevitavelmente recairá sobre o servidor o ônus de arcar com o prejuízo da falta, caso não consiga realizar a doação e apresentar o respectivo comprovante à Administração.
Ainda nesse jaez, cumpre salientar que em caso de qualquer falta injustificada ao serviço, ao servidor poderá ser imputada apenas o corte na folha de ponto, medida essa meramente administrativa, cuja incidência disciplinar só ocorrerá nos casos de abandono de cargo (Ausência por 30 dias consecutivos) ou inassiduidade habitual (Ausência por 60 dias, interpoladamente).

Em se tratando da falta ocorrida em função da doação de sangue, se a Lei não exige a prévia comunicação para faltas não justificadas, quanto menos exigirá para faltas justificadas. A justificativa que, a nosso ver, prescinde de prévia comunicação, será o próprio documento que ensejou o afastamento, não devendo à Administração acrescer à Lei, em detrimento do administrado, o que ela não disse.

Desta feita, não é razoável exigir que o servidor faça prévia comunicação à chefia quando da doação voluntária de sangue, quando a própria lei que instituiu o direito à folga assim não o disse. Não cabe à Administração legislar através de elucubrações interpretativas.

Por outro lado, a tentativa de reparar entraves relacionados ao planejamento operacional, como os problemas logísticos decorrentes da falta de recursos humanos e lotação de não devem servir de aporte para justificar, pura e simplesmente, a denegação do direito do servidor de apresentar-se como doador voluntário de sangue. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra!

A sabedoria está no meio, e os gestores públicos devem a ela moldar seus atos, de modo a que, melhorando o planejamento dos serviços públicos, não deixe faltar os recursos necessários para o atendimento do interesse público, seja na prestação do serviço, seja na garantia da doação de sangue.


REFERÊNCIAS:

1 CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 216/1949. Projeto de Lei.Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=173282, acessado em 15/05/2020.
2 BANCOS DE SANGUE NO BRASIL. Disponível em: https://www.institutohoc.com.br/bancos-sangue-brasil.html acesso em 15/05/2020.
3 VILELA, Pedro Rafael. Só doação regular de sangue mantém estoques, diz ministério. Agência Brasil, 2019. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2019-11/so-doacao-regular-de-sangue-mantem-estoques-diz-ministerio acesso em 15/05/2020.
4 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA - CFM. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28254:2019-05-22-21-49-04&catid=3 Acesso em 15/05/2020.
5 INSTITUTO ONCOLOGIA. Estimativas de Câncer no Brasil. Disponível em: http://www.oncoguia.org.br/conteudo/estimativas-no-brasil/1705/1/
6 BANCOS DE SANGUE NO BRASIL ESTÃO QUASE ZERADOS EM MEIO A CORONAVÍRUS; VEJA COMO DOAR. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/em-meio-a-crise-do-coronavirus-bancos-de-sangue-estao-quase-zerados-diz-governo-de-sp.shtml
7 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria nº 158/2016. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0158_04_02_2016.html acesso em 15/05/2020.

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